

Um bilhão de mortes às custas do cigarro.
16 de outubro de 2020Um bilhão de mortes às custas do cigarro.
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Com tantas campanhas de saúde contra o tabagismo no mundo e com amplos esforços de governos em estabelecer leis que restrinjam o cigarro, seria de se esperar queda no número de fumantes. Isso está acontecendo, de fato. No Brasil, um dos índices mais confiáveis, o da Pesquisa Nacional de Saúde, aponta que os fumantes representam cerca de 15% da população (dados relativos a 2013). Em 1989, o percentual se aproximava de 35%, de acordo com estatísticas oficiais.
Mas a redução pode mascarar o problema, que é muito impactante para a saúde pública. O tabagismo é responsável por mais de 50% das causas ou de pioras de uma enfermidade. Ou seja, se o cigarro não existisse, metade dos casos de doenças que registramos hoje não teriam ocorrido.
O médico Daniel Deheinzelin, pneumologista do Hospital Sírio-Libanês, chama a atenção para o ingresso de novos fumantes nas estatísticas a partir da população jovem. Isso porque, apesar dos alertas, o tabagismo persiste. Se esse quadro não for mudado drasticamente, a OMS estima que o cigarro será responsável por 1 bilhão de mortes neste século. Hoje somos quase 8 bilhões de pessoas no planeta.
Pergunta – Qual o percentual de adultos fumantes no Brasil? O índice vem apresentando queda expressiva nas últimas décadas pelos dados do Inca (Instituto Nacional do Câncer). Qual a perspectiva de prevalência de tabagismo no futuro?
Daniel Deheinzelin – De fato, o índice está caindo. Mas o número absoluto não é tão importante. Há duas questões fundamentais. A primeira é avaliar em que faixa etária tem tabagistas. E a segunda é que faixa de renda ou estrato social tem maior ou menor prevalência do tabagismo.
Se não for assim, a gente vai ter uma visão desigual do problema. A primeira coisa a observar é, quando você tem muitos jovens fumando – e nós temos –, mesmo que o número hoje seja mais baixo, isso no futuro vai ser diferente. E é um problema porque, de um lado, tem a percepção de que fumar não é tão ruim diante de todas as outras ruindades da vida.
Do outro, você tem outras formas de acesso. Estamos falando de narguilé, cigarro eletrônico. O indivíduo tem outras formas de se tornar viciado em nicotina. Temos de levar isso em conta quando falarmos de prevalência. Temos de falar das portas de entrada e da faixa etária. A condição do Brasil é: muita gente, entre 30 e 60 anos, parou de fumar. Mas não diminuiu a entrada de gente no mundo fumante. Outra questão, que é uma preocupação do mundo inteiro, é que fumar está se tornando, cada vez mais, uma atividade de Terceiro Mundo.
Afeta justamente a população que tem mais possibilidade de riscos por falta de estrutura, por acúmulo de problemas. Portanto, o número absoluto de tabagistas é importante, mas não é o mais importante. A prevalência no Brasil fica em 14,7%. Um em cada seis brasileiros fuma.
P – Qual é o custo do cigarro para o indivíduo, para o Estado e para a sociedade?
Deheinzelin – Um homem que fuma vive, em média, 12 anos a menos que um que não fuma. Uma mulher que fuma vive, em média, 11 anos a menos. Isso não é uma extrapolação; é um dado da realidade. É um estudo feito na Califórnia, nos últimos dez anos. Não tem nada em termos de saúde que tenha um impacto maior na vida de uma pessoa do que parar de fumar, se ela for fumante. Tratar colesterol não dá um aumento de sobrevida de dez anos de jeito nenhum. Embora seja uma coisa que a gente saiba que melhora, que é prevenção, o resultado não se compara de jeito nenhum. A partir daí, como estamos falando de mortes, qualquer outro custo – e os custos financeiros são reais – acho que tem menos impacto. Cigarro é responsável por mais de 50% das causas ou de pioras de mais de 50% das doenças que o homem pode ter.
Se não tivesse cigarro, a gente teria, teoricamente, metade da casuística de todas as doenças que existem hoje. Isso dá ideia do impacto do cigarro na saúde pública. Se a gente for falar do lado financeiro, vou dar um exemplo: há 50 vezes mais investimentos em pesquisas de drogas para tratar o câncer causado pelo cigarro do que em pesquisas que ajudem as pessoas a pararem de fumar. Então, investe-se muito mais em tratar a consequência do que em tratar a causa.
P – Vem sendo feito um esforço muito grande, tanto em termos de campanhas quanto em relação à legislação, para reduzir o consumo de cigarro. Essas ações não estão sendo tão eficazes quanto deveriam ser?
Deheinzelin – Elas estão sendo eficazes. Não é um conjunto de ações tão grande assim e não é algo que começou hoje. Estou informando um dado: se você entrar na página do NIH (National Institute of Health, dos EUA) para ver quantos protocolos de pesquisa têm abertos para tratar câncer de pulmão e comparar com o número de protocolos de pesquisa abertos para melhorar os resultados de cessação de tabagismo, verá que tem 50 vezes mais pesquisas e, consequentemente, mais dinheiro para tratar câncer de pulmão. Não estou dizendo que as medidas não são efetivas. Elas são. Mas quantas vezes você viu um anúncio ou qualquer forma de acesso à clínica de cessação de tabagismo? E quantas vezes viu algo que diz que dar cloroquina para tratar covid é bom? Pronto.
É preciso falar mais? Existe uma indústria toda para tratar da doença. Antes se poderia argumentar que a gente não tinha a compreensão de como o cigarro causa tudo isso. Hoje nós temos. Poderiam argumentar que não havia tratamentos efetivos. Hoje temos. Então, a cessação do tabagismo como medida de saúde pública é a melhor coisa que se pode fazer. Tenho um número a dizer. A previsão é que, neste século, 1 bilhão de pessoas irão morrer por causa do cigarro. Esse é um dado da OMS. O impacto é muito grande. Não tem nada parecido.
P – Apesar de tudo o que foi feito em campanhas, parece que as pessoas não estão informadas a contento.
Deheinzelin – A questão é que as pessoas estão sendo informadas pela internet. A informação está lá, mas a pessoa não sabe, nem pensou sobre ela. Não é só porque existe a informação.
O ponto é a sua utilização. Essa é a primeira coisa. A segunda é que a natureza humana é curiosa, tem o pensamento mágico. “Eu fumo, mas acho que nada não vai acontecer comigo; vai acontecer com o outro.” Só saber o que acontece não resolve.
P – Então, o que é necessário fazer para tentar diminuir o tamanho estrondoso dessa calamidade que teremos no século?
Deheinzelin – Tem dois caminhos: o primeiro é impedir que mais gente entre na dependência da nicotina. O adolescente que fuma cigarro eletrônico tem 20 vezes mais chance de virar um fumante de cigarro do que um adolescente que nunca fumou um cigarro eletrônico. Então, sim, tem risco de virar dependente de nicotina.
Na outra ponta, é preciso incentivar, estimular o máximo de pessoas que fumam a pararem de fumar. Não tem outra medida, não tem outra coisa.
P – Pesquisas mostram que, em média, o jovem começa a fumar em torno dos 16 anos. O que leva o jovem a consumir cigarro, já que até pelas redes sociais nota-se que o cigarro não tem uma boa imagem?
Deheinzelin – Nicotina é uma droga.
As pessoas consomem droga porque consumir é “bom”. A gente não consome droga porque esse consumo é ruim. A nicotina modula a ação de todos os sistemas de neurotransmissores que o corpo tem. Nenhuma outra droga faz isso. A nicotina, como droga, é extremamente potente. E é claro que essa é a razão principal por que tanta gente que experimenta cigarro continua fumando ou fica viciado. O que faz alguém experimentar cigarro? Tem várias coisas.
Primeiro motivo é a curiosidade.
Segundo, por comportamento de grupo. Terceiro, insegurança. Tem “n” razões, mas o que é fundamental é que essa pessoa está tendo contato com uma droga que é extremamente viciante. Ela vicia mais que cocaína, mais que heroína. Ela cria dependência muito rapidamente. É isso que vai fazer o jovem se tornar fumante.
P – Não tem como não pensar no cigarro na pandemia. Cigarro é um facilitador para várias doenças, mas, no caso da pandemia, é um facilitador para quadros mais graves?
Deheinzelin – A gente está aprendendo que as comorbidades são um fator decisivo no prognóstico das pessoas com o novo coronavírus. Grande parte dessas comorbidades são causadas pelo cigarro, como hipertensão e as doenças coronarianas.
Mas são várias doenças. Então, a primeira coisa é saber que fumantes têm mais comorbidades. Outra coisa é que o cigarro preferencialmente estraga o pulmão. Se você tem uma doença que afeta muito o pulmão, então o fato de ser fumante piora o seu prognóstico. Há muita discussão se o cigarro é, de fato, um facilitador para a entrada do vírus. Certamente, o grau de ansiedade e de outras manifestações psiquiátricas piorou muito com a quarentena em todo o mundo. E isso é um fator que aumenta muito o consumo de cigarro.
P – Do ponto de vista de medicamento, quais são as formas mais atualizadas de combate ao tabagismo?
Deheinzelin – Pelo menos três tipos de drogas são eficientes para o tabagismo.
A primeira são todas as drogas que fazem a reposição de nicotina: adesivo, chiclete, qualquer outra forma que consiga dar ao organismo a mesma dose de nicotina que você está acostumado a receber. Elas são efetivas para fazer o indivíduo parar de fumar. A segunda classe é a dos medicamentos antidepressivos ou de estabilizadores do humor. O de principal efeito a se verificar é a bupropiona, que mexe muito na relação com a vontade de fumar. E a terceira classe é dos análogos da nicotina. O exemplo principal é uma droga que se chama vareniclina. Ela foi feita para parecer a nicotina. Ela vai no mesmo lugar que a nicotina vai. Aí, ao estar no mesmo lugar, ela impede a nicotina de agir. Assim, você não tem o mesmo efeito da nicotina no corpo quando fuma. Essas três classes de drogas são bastante efetivas. Para o tratamento, tem de usar pelo menos uma delas para aumentar muito a chance de parar de fumar. Fora isso, a última questão é o tratamento chamado comportamental. As pessoas se habituaram a fumar em certas condições. Quando entra no carro, por exemplo. A terapia é para mudar esse comportamento, se não fica muito difícil parar de fumar. Hoje o que a gente utiliza é a associação de drogas com terapia comportamental.
É o que se conhece de mais efetivo. Um erro comum é começar a tomar remédio e tentar parar já de fumar. Esses medicamentos demoram para fazer efeito. Você tem de avaliar se o paciente está sentindo os efeitos para daí seguir adiante com o tratamento. Isso é um processo, não é uma régua.